claques...
Acabem com as claques
Henrique Raposo
expresso
A sociedade e a polícia legitimam há anos o vandalismo das
claques.
Não o controlam, não o punem, legitimam-no. E a legitimação começa num
termo engraçado, "caixa de segurança".
É este o eufemismo que esconde uma cena
absurda que se repete época após época: quatro, cinco, seis, dez mil gandulos
juntam-se num sítio e depois são escoltados pela polícia até ao estádio do rival
na tal "caixa de segurança". Neste percurso legitimado e protegido pela polícia,
a "caixa de segurança" funciona como um arrastão, lojas têm de ser fechadas,
ruas têm de ser fechadas. Ou seja, o estado de direito, representado pela
polícia, não protege o cidadão das acções dos bárbaros. Faz o inverso: põe em
causa a normalidade do cidadão para permitir a passagem de um pequeno furacão de
candidatos a gangsters. Eis, portanto, o absurdo: a polícia é babysitter de
gente que devia estar a prender. Sim, o lugar de boa parte daqueles charrados
profissionais não é o estádio, é o chilindró.
Mas o absurdo da "caixa de segurança" não acaba aqui. Lá dentro,
não existe lei. Ou melhor, existe a lei dos pequenos mafiosos que controlam a
turba. Nas barbas da polícia, que só controla o cordão exterior da "caixa de
segurança", aqueles índios caminham com armas, droga e petardos. Pior: eu sou
revistado à entrada do estádio, mesmo quando levo uma criança pela mão, mas
ninguém revista as claques. A impunidade é total. É como se a claque de futebol
fosse uma licença para o banditismo. E a impunidade chega ao limite quando vemos
esta gente a agredir polícias com um sorriso nos lábios. Porque é que sorriem?
Porque sabem que não sofrerão grandes consequências. O índio da claque sabe que
está protegido pela confusão, sabe que as suas acções individuais são diluídas
pela onda colectiva. Resultado? Na TV e ao vivo, já vi claques a humilhar
polícias sem qualquer tipo de consequência posterior. Porque é que isto
acontece? Como é que podemos ser tão tolerantes com gente que actua
objectivamente fora da lei?
E existe ainda outro acorde desta sinfonia de
impunidade: em Portugal, apenas treze indivíduos estão legalmente impedidos de
entrar em estádios. Treze. Parece piada, não é? Mas a piada maior é outra: a
polícia não tem meios para os controlar. Porquê? Provavelmente porque está a
fazer "caixas de segurança" para os outros 10 mil índios.
Como já se percebeu, esta questão sai do relvado e entra na moral
da sociedade por inteiro.
Aliás, a falta de firmeza perante as claques é um dos
sintomas de uma doença grave que nos afecta há décadas: a sociedade portuguesa
confundiu autoritarismo com autoridade.
Se o primeiro conceito
invoca um sistema político filha da mãe, o segundo representa um valor
fundamental na vida democrática.
Ao contrário do que reza a lenda,
democracia não é a abolição da autoridade. É, isso sim, a legitimação da
autoridade.
O poder policial do Estado Novo era ilegítimo, porque estava ao
serviço de um regime autoritário.
O poder policial da democracia é legítimo,
porque está ao serviço do nosso bem comum.
À justiça da ditadura, que tinha duas
espadas e nenhuma balança, não se seguiu uma justiça com duas balanças e nenhuma
espada.
A justiça democrática tem a espada ao lado da balança, e não deve ter
medo de usá-la.
Uma carga policial sobre claques de gandulos não é repressão, é
lei e ordem. A proibição activa destas claques lideradas por criminosos não é
repressão, é decência.
Será preciso morrer alguém para acabarmos com a
brincadeira?
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